terça-feira, 8 de maio de 2012

UM GOVERNO INFESTADO DE GAFANHOTOS



Com dúzias de autoridades e 5.000
cidadãos humildes, Roraima recria
a praga
da corrupção

Malu Gaspar, de Boa Vista
Roberto Jayme
O ex-governador Neudo Campos: a praga começou no seu governo


O governador de Roraima, Flamarion Portela, o único da atual safra de governadores a filiar-se ao PT depois da posse, teve uma discreta audiência com o ministro José Dirceu, no Palácio do Planalto, na noite de quinta-feira passada. Oficialmente, o governador desembarcou em Brasília com três assuntos na bagagem: problemas fundiários, demarcação de terras indígenas e liberação de verbas federais. A parte mais quente da agenda, porém, estava oculta e dizia respeito a um desconcertante desvio de dinheiro público em seu Estado, cujos meandros estão sendo revelados por uma profunda investigação oficial. Com uma economia precária, Roraima responde por apenas 0,1% do PIB brasileiro e sua sobrevivência é garantida por recursos de Brasília, que banca mais de 80% das despesas do Estado. Apesar da penúria, o governo estadual concebeu, implantou e manipulou clandestinamente, por pelo menos cinco anos, uma abusada tecnologia de desfalque na folha salarial do funcionalismo público. Estima-se que o esquema tenha sugado, em média, 70 milhões de reais por ano – uma enormidade, equivalente a mais de 10% do orçamento do Estado – e se tornado epidemia, um caso de corrupção institucionalizada.
O desvio, que está sendo investigado por equipes da Polícia Federal e dos Ministérios Públicos Estadual e Federal, tinha uma abrangência notável. Entre os 42.000 servidores estaduais, havia 5.000 funcionários "gafanhotos", como se diz no vocabulário local, numa alusão ao inseto que come folhas – no caso, folhas de pagamento. Os gafanhotos tinham o nome incluído na folha do Estado, mas em geral nem sabiam disso, e o grosso do salário deles era embolsado por terceiros. Maria Ivanilde Arruda, 40 anos, era um gafanhoto. No início de 2002, ela pediu ajuda a um deputado estadual. Para ganhar o auxílio financeiro, Ivanilde teve de comparecer a um cartório, acompanhada pelo "pessoal do deputado", e precisou "assinar um papel". Sem saber, virara servidora pública e, ao mesmo tempo, passara uma procuração aos assessores do deputado. No fim do mês, os assessores sacavam o salário de Ivanilde, de 1.000 reais, davam-lhe entre 100 e 200 reais e embolsavam o resto. "Se eu ganhasse 1.000 reais, não tinha passado tanto aperreio", disse ela, ao descobrir o rolo.
Nonato Souza/Folha de Boa de VistaAna Araujo
O governador Flamarion Portela (à esq.), a Amazon, que pagava a gafanhotada, e a fila para o primeiro grande concurso público do Estado
Ana Araujo


Entre os 5.000 gafanhotos, 176 nem moravam em Roraima. Espalhavam-se por dezoito Estados do Brasil. Apesar da quantidade de envolvidos e do espraiamento geográfico, o esquema aparentemente beneficiava um grupo restrito. Até agora, os investigadores examinaram as procurações outorgadas por 1.366 gafanhotos e, surpresos, descobriram que os outorgados formam um grupo reduzidíssimo: sessenta pessoas. Analisando-se quem são, fez-se outra descoberta interessante. A esmagadora maioria dos procuradores era formada por parentes ou funcionários de vinte deputados estaduais, dois dos quais são hoje altos auxiliares de Flamarion Portela e três, conselheiros do Tribunal de Contas do Estado. São esposas, irmãos, filhos, primos, sobrinhos e filhos adotivos, além de secretárias e assessores. O campeão é o deputado estadual Jalser Renier Padilha, 31 anos, que começou a carreira parlamentar como radialista e hoje mora numa das residências mais suntuosas de Boa Vista, com piscina coberta e aquário no chão do quarto. Duas assessoras do jovem deputado detêm procurações de 135 gafanhotos, cujos salários somam 243.000 reais mensais.
O deputado admite que indicava quem lhe pedia ajuda para um emprego público, mas diz que jamais soube das procurações em poder de suas assessoras. "Eu indico as pessoas, e o Estado amadurece a idéia de empregar ou não", diz ele. "Roraima é um Estado muito pobre, não tem outra fonte de receita a não ser a economia do contracheque." A turma ligada ao presidente da Assembléia Legislativa, Antonio Mecias Pereira de Jesus, reúne procurações de 111 gafanhotos, num total salarial de 213.000 reais por mês. Nenhum dos deputados cujos parentes aparecem entre os sessenta procuradores fatura menos de 40.000 reais. Entre os conselheiros do Tribunal de Contas, a maior remuneração é de 51.000 reais mensais – no caso, de procuradores aparentados do conselheiro Henrique Machado, ex-deputado estadual. Apesar do tamanho que já assumiu, com a tomada de 480 depoimentos num único mês, a investigação está longe do fim. Falta abrir cinqüenta caixas de documentos apreendidos na Amazon Service Bank, empresa que, contratada pelo governo estadual, fazia o pagamento aos procuradores dos gafanhotos.
Fotos Ana AraujoAna Araujo
A mansão e seu dono, o deputado Jalser Padilha: 243.000 reais por mês


"A certeza da impunidade era tanta que não houve preocupação em esconder os documentos", afirma o delegado Julio Baida Filho, que preside o inquérito da Polícia Federal. "A fraude está amplamente documentada." Desde o ano passado, quando Neudo Campos governava Roraima, sabia-se da existência de irregularidades na folha salarial, mas o que viera a público era apenas um pequeno pedaço do esquema. Falava-se, na época, que vinte pessoas tinham procuração em nome de pouco mais de 300 servidores e embolsavam, por ano, 7 milhões de reais. As investigações mostram que o negócio era tão mais amplo que ganhou ares de um caso exemplar de espoliação do bem público – em que somente sessenta pessoas, ligadas a duas dúzias de autoridades, engambelam milhares de cidadãos humildes e privatizam um naco respeitável do Erário. São tantos os tentáculos, e tantos os envolvidos para um Estado com apenas 330 000 habitantes, que, nos bares e restaurantes de Boa Vista, é comum flagrar grupos discutindo o assunto – e especulando quem, entre os sentados às mesas vizinhas, pode estar implicado no caso.
Segundo as investigações, a praga começou a infestar o Estado em 1998, às vésperas do ínicio do segundo mandato de Neudo Campos, que autorizava a contratação da gafanhotada indicada por parlamentares. "Admitir funcionários é uma coisa, saber que eles não trabalhavam é outra. Para mim, todos trabalhavam", diz o ex-governador. O vice, na época, era o próprio Flamarion Portela, o atual governador que concorreu ao cargo pelo PSL e, depois de empossado, se bandeou para o PT. Na quarta-feira passada, o governador concordou em receber VEJA em seu gabinete em Boa Vista, mas não apareceu no encontro. Depois disso, a revista voltou a procurar sua assessoria para tentar um novo contato em Boa Vista ou em Brasília, para onde o governador embarcara no meio da semana. Apesar das tentativas, Flamarion Portela não conversou com VEJA. Seu assessor de imprensa, Péricles Peruschi, disse que, na audiência com o ministro José Dirceu, o governador nem sequer tocaria no assunto dos gafanhotos, dado que se trata de uma herança da gestão anterior. "O Flamarion é só um espectador nesse processo", explicou.
Em depoimento prestado ao Ministério Público, Carlos Levischi, diretor do Departamento de Estradas de Rodagem, uma lavoura com 800 gafanhotos, contou que o ex-governador Neudo Campos determinava a cota de gafanhotos de cada deputado estadual, mas, em sua ausência, quem comandava o esquema era o vice, Flamarion Portela. A investigação constatou ainda que, desde abril de 2002, quando Flamarion assumiu o governo na licença eleitoral de Neudo Campos, a gafanhotada não apenas seguiu comendo a folha salarial como até se multiplicou. Em dezembro, a remuneração dos gafanhotos somava 24 milhões de reais, o dobro do início do ano. Além disso, o atual governo nomeou, para cargos importantes, pelo menos quatro pessoas acusadas de envolvimento direto no caso, incluindo aí o atual titular da Secretaria da Fazenda, cargo estratégico na disseminação da praga dos insetos. Agora, depois de um acordo com o Ministério Público, o atual governador está fazendo os primeiros concursos da história de Roraima, e o maior já abriu inscrições para o preenchimento de 8.000 vagas, num procedimento que, se feito com lisura, poderá salvar a lavoura.

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